ALFABETIZAR NA PRÉ-ESCOLA
(Telma Weisz) (...)”Alguma ideias sobre as questões relacionadas à aprendizagem de escrita eram correntes há vinte anos. Essa ideias tenderam a desaparecer do discurso pedagógico, mas não desapareceram, na verdade,da sala de aula.
Uma dessas ideias é que a criança não sabe nada sobre a escrita antes de ser formalmente ensinada. Outra ideia corrente a vinte anos atrás é que a criança ou aprende o que o professor ensina ou não aprende nada; que a alfabetização é uma aprendizagem de natureza perceptual e motora; que o papel de cada letra na escrita é facilmente demonstrável, daí que a parte difícil da alfabetização seria, portanto, a memorização da correspondência entre as letras e as emissões sonoras.
O que sabemos hoje sobre o processo através do qual se chega a poder ler e escrever de forma convencional, e que é consenso entre os que investigam questões relativas à aquisição da escrita, é que esta é um objeto sócio cultural de conhecimento. Isto é, a escrita está presente e é usada pelas pessoas no mundo onde a criança vive.o que faz com que a criança pense sobre esse objeto, tenha ideias sobre a escrita antes de esta lhe ser formalmente ensinada.
Recém compreendemos que método de ensino e processo de aprendizagem não se confundem. A expressão processo ensino-aprendizagem, ainda de uso corriqueiro, expressa uma compreensão desses processos como se fossem duas faces da mesma moeda. No entanto, estes são dois processos diferentes e correspondem a dois sujeitos diferentes. O processo de ensino é dirigido pelo professor e o processo de aprendizagem é realizado pela criança. E hoje já se aceita que a criança pode e costuma utilizar as informações do professor de forma muito diferente da que ele imagina e ensina.
Assumindo a alfabetização como uma aquisição de natureza conceitual, torna-se possível reconhecer que algumas das conceitualizações errôneas que as crianças constroem sobre a natureza e o funcionamento do sistema de escrita são necessárias para que ela aprenda, mas são insuficientes para que dê conta do objeto que tenta compreender. Como essas conceitualizações são, insuficientes, frequentemente contarditórias entre si, o aprendiz, quando tem acesso à informação, acaba superando-as (pois se ele não tiver acesso à informação, nada brotará de dentro dele). Esta superação se dá (quando se dá) através de reconstruções sucessivas, até chegar a uma conceitualização do tipo alfabético, que no nosso caso é a adequada ao português. Se essa criança vivesse no Japão, ela chegaria a uma conceitualização do tipo silábico, adequado ao japonês; ou se ela morasse em um país de língua árabe ou hebraica chegaria a uma conceitualização do tipo silábico-consonantal, que corresponde tanto ao árabe quanto ao hebraico.
O conhecimento acumulado sobre a aquisição da linguagem escrita ultrapassou, há tempos, os limites de uma visão simplista de aquisição de um sistema de escrita, de aprendizado do be-a-bá. Essa aquisição é hoje pensada como maior e mais complexa, comum processo através do qual nós nos tornamos capazes de ler produtivamente e de redigir diferentes tipos de textos, dominando a linguagem que usa para escrever.
Já sabemos que não basta ser capaz de decodificar uma página escrita, ou mesmo ser capaz de escrever com ortografia adequada em situação de ditado, para poder compreender e utilizar o que se lê para conseguir produzir um texto. Para isso é preciso conhecimento do tipo de linguagem que se usa para escrever e das características dos diferentes gêneros. Não é a mesma tarefa produzir uma lista, uma carta ou um conto, muito menos ler um manual, um jornal ou texto científico.
Como se chega a essa ação alfabetizadora, tão maior do que a que já nos derrotava há vinte anos atrás? O que se pensa hoje a respeito é que a experiência com textos diferentes e diferentes gêneros é fundamental para a constituição do que temos chamado de letramento (...)”
Mas o que vem a ser letramento? Vou tentar tornar o termo mais claro mostrando a produção de duas crianças de uma escola pública, sujeitos de uma pesquisa da qual participei. Nessa escola de periferia acompanhou-se durante um ano uma classe em que foram reunidos alunos multirrepetentes. A informação dada pela escola foi de que aquelas crianças não sabiam ler nem escrever. Porém, quando nós entramos na sala e fizemos uma proposta de escrita e de leitura, das 27 crianças, 24 escreviam alfabeticamente, com erros ortográficos, é verdade, mas já tinham compreendido o funcionamento do sistema de escrita. Vou narrar o que observei em uma classe quando uma professora fez algo que é muito comum, que é dar um pequeno início, para tentar disparar uma atividade de produção de texto. Ela escreveu na lousa: Era uma vez uma casa... e, com isso, ela esperava que cada um desenvolvesse um tema em uma direção pessoal.
Diante do estímulo Era uma vez uma casa... um dos alunos, Wellington, escreveu o seguinte texto, em que todas a frases começam e terminam na mesma linha, iniciadas sempre com letra maiúscula e finalizadas com um ponto. WELLINGTON
Era uma ves uma casa bonita e colorida.
Era uma ves uma casa no jardim.
Era uma ves uma casa cheia de flor.
Era uma ves uma casa linda e bonita.
Era uma ves uma casa lano parana.
Era uma ves uma casa pintada de azul.
Era uma ves uma casa la ne cotia.
Era uma ves uma casa la na prainha.
Era uma ves uma casa preta e limpa.
Era uma ves uma casa com talheres.
Era uma ves uma casa la ne minas.
Era uma ves uma casa no jardim.
Era uma ves uma casa cheia de flor.
Era uma ves uma casa linda e bonita.
Era uma ves uma casa lano parana.
Era uma ves uma casa pintada de azul.
Era uma ves uma casa la ne cotia.
Era uma ves uma casa la na prainha.
Era uma ves uma casa preta e limpa.
Era uma ves uma casa com talheres.
Era uma ves uma casa la ne minas.
Observe-se que Wellington escreve com todas as letras e há pouca coisa errada: só o “em” que é escrito com “ne”, e a falta de acentos e de letra maiúsculas nos nomes de lugar. Entretanto, a escola não reconhece isso. Talvez porque sua produção não se enquadre em nenhum dos gêneros que a escola reconhece, apesar de ter origem em um gênero que só a escola oferece: a cartilha onde escrever pode ser confundido com listar frases sobre um mesmo tema, uma embaixo da outra. Esse menino aprendeu que a escola ensinou e a escola recusou o saber dele.
Vamos ver agora a produção de Michele. Ela não repetiu o que a professora pôs na lousa. De “era uma vez uma casa” ela passou para “era uma casa tão bonita”.
Vamos transcrever o texto com o mínimo de mudança para garantir seu entendimento:
MICHELE
Era uma tão bonita que as crianças mora nela. Cinco crianças moram na casa da mamãe. As crianças da mamãe chama Carla, Patrícia, Simone, Carine, e Elciane. Aíe se foi. Aí se nadar no rio. E o rio é muito cheio. Quem sabe se nada. Quem sabe foi a Elciane e a Patrícia, Simone e a Carine.nadou e nadou que elas ficaram cansada. Que enjoou pra caramba porque a mamãe chamou, chamou e cansou. Muito. As crianças não vinheram... Só a Patrícia que veio do rio. Papai foi buscar Carla e Simone e Carine e a Elciane. A que foi mais pirracenta foi a Elciane.
Era uma tão bonita que as crianças mora nela. Cinco crianças moram na casa da mamãe. As crianças da mamãe chama Carla, Patrícia, Simone, Carine, e Elciane. Aíe se foi. Aí se nadar no rio. E o rio é muito cheio. Quem sabe se nada. Quem sabe foi a Elciane e a Patrícia, Simone e a Carine.nadou e nadou que elas ficaram cansada. Que enjoou pra caramba porque a mamãe chamou, chamou e cansou. Muito. As crianças não vinheram... Só a Patrícia que veio do rio. Papai foi buscar Carla e Simone e Carine e a Elciane. A que foi mais pirracenta foi a Elciane.
Observa-se que nesse caso há uma narrativa com começo, meio e fim, com comentários interessantes, mas é uma narrativa oral. A criança não deu conta de fazer a tradução, sé é que isso é possível. Essa criança aprendeu a ler e escrever. O texto está em português, com erros de ortografia, mas está escrito, tanto que nós pudemos ler. Mas está numa linguagem que não se costuma usar para escrever. A escola também não reconhece esse texto como uma produção respeitável. Não reconhece mas também não oferece os elementos modelizadores que podem fazer com que essa criança avançasse daí um texto narrativo escrito.
Vimos as produções do Wellington e da Michele, agora vamos ver a da Bianca, que não escreveu. Coube a ela, neste dia, escolher um livro de história já conhecido e “ler” para os colegas. Ela abriu o livro da Cinderela, pôs no colo e começou a ler. Mas Bianca não sabe ler no sentido convencional. Então apoiada no livro ela vai reconstruindo oralmente a história que foi gravada e transcrita assim:
BIANCA
Era uma vez uma linda jovem Cinderela. Ela tinha uma madrasta e a madrasta tinha duas filhas. Elas eram muito vaidosas. Então um dia elas... ... o príncipe resolveu dar uma baile. Elas, coita... ... a Cinderela, coitadinha dela, tinha que arrumar vestidos das filhas e da madrasta. À noite ela dormia no borralho da cozinha. Então, quando elas acabaram de sair, Cinderela pôs-se a chorar. Então a fa... uma imensa de uma luz brilhosa apareceu uma linda mulher. Por que choras? Sou tua fada madrinha. Porque quero ir ao baile e não tenho vestido. Oh! Eu ou dar um jeito nisso. É só você me traz três ratinhos brancos e uma abobla bem grande. Então ela pega. A abobla virou uma linda carruagem. Os cavalos e os ratinhos... um ratinho em cocheiro e outros em lindos e elegantes cavalos. Então né, A fadinha... ... sua roupa velha estragada de Cinderela virou um lindo vestido, e nos pés pôs sapatinho de cristal. Ela tava tão bonita que todos olharam para ela. Então ela... o príncipe ficou encantado. E as filhas falaram: Olha, que é isso? O príncipe ficou encantado. Aí aconteceu a meia noite. Ela voltou. Ela... na escada ela perdeu um sapatinho de cristal. Então... e o príncipe pôs o sapatinho de cristal. Logo chegou à frente da casa da Cinderela. As filhas tentaram calçar, mas não conseguiram. Só coube em Cinderela. A Cinderela... coube nela. Então o príncipe achou... pediu ela em casamento. Então ela aceitou. E acabou a história, morreu dona Vitória e quem quiser que conte outra. Fim.
Era uma vez uma linda jovem Cinderela. Ela tinha uma madrasta e a madrasta tinha duas filhas. Elas eram muito vaidosas. Então um dia elas... ... o príncipe resolveu dar uma baile. Elas, coita... ... a Cinderela, coitadinha dela, tinha que arrumar vestidos das filhas e da madrasta. À noite ela dormia no borralho da cozinha. Então, quando elas acabaram de sair, Cinderela pôs-se a chorar. Então a fa... uma imensa de uma luz brilhosa apareceu uma linda mulher. Por que choras? Sou tua fada madrinha. Porque quero ir ao baile e não tenho vestido. Oh! Eu ou dar um jeito nisso. É só você me traz três ratinhos brancos e uma abobla bem grande. Então ela pega. A abobla virou uma linda carruagem. Os cavalos e os ratinhos... um ratinho em cocheiro e outros em lindos e elegantes cavalos. Então né, A fadinha... ... sua roupa velha estragada de Cinderela virou um lindo vestido, e nos pés pôs sapatinho de cristal. Ela tava tão bonita que todos olharam para ela. Então ela... o príncipe ficou encantado. E as filhas falaram: Olha, que é isso? O príncipe ficou encantado. Aí aconteceu a meia noite. Ela voltou. Ela... na escada ela perdeu um sapatinho de cristal. Então... e o príncipe pôs o sapatinho de cristal. Logo chegou à frente da casa da Cinderela. As filhas tentaram calçar, mas não conseguiram. Só coube em Cinderela. A Cinderela... coube nela. Então o príncipe achou... pediu ela em casamento. Então ela aceitou. E acabou a história, morreu dona Vitória e quem quiser que conte outra. Fim.
A Bianca tinha 4 anos, o Wellington 9 e a Michele 11. Nós podemos dizer que a Michele e o Wellington são menos letrados do que a Bianca, apesar de eles saberem ler e escrever e ela não.
O termo ambiente alfabetizador tem sido confundido frequentemente com a imagem de uma sala de aula de paredes cobertas de coisas escritas. Porém, na verdade, o ambiente alfabetizador é uma ecologia alfabetizadora, não apenas um espaço físico. É um conjunto de eventos de letramento dos quis uma criança tem a oportunidade de participar. Chamamos de eventos de letramento, situações sociais mediadas pela a escrita, onde uma ou mais usuários desta funcionam (ainda que nem sempre intencionalmente) como informantes dos que ainda não podem usar a escrita sozinhos. Por exemplo, quando alguém comenta em voz alta sobre uma carta que escreveu ou vai enviar, quando procura-se um telefone numa caderneta pessoal ou lista telefônica.
Quando anota-se ou verifica-se a agenda de compromissos, usam-se instruções escritas para jogar ou um manual para fazer funcionar um aparelho; dita-se uma receita para alguém ou usa-se uma, passo a passo para cozinhar; lê-se o jornal e comenta-se as notícias; leem-se história e fazem-se comentários sobre elas. É a participação da criança nesses eventos de letramento que determinam que um ambiente seja alfabetizador.
Há um trabalho na área de antropologia da comunicação que é fundador da reflexão sobre a relação entre o sucesso escolar e as experiências de letramento. Constitui um estudo longitudinal na área de etnografia na comunicação. A autora toma como de análise o que chamamos de eventos de letramento. Este trabalho foi extremamente influente e serviu como orientação para muitas pesquisas realizadas hoje na área de leitura.
Temos atualmente elementos de sobra para discutir sobre a necessidade de haver maior responsabilidade das instituições de educação infantil com relação à aprendizagem da linguagem escrita. Pensamos, no entanto, que a origem das atuais divergências pode estar nas diferentes concepções de aquisição da escrita. A ideia de que a criança não sabe nada sobre a escrita, antes de ser formalmente ensinada, leva a conclusão inevitável, de que, para que ela se aproxime da escrita, adquirindo-as na escola de educação infantil, ela precisaria de uma situação de ensino formal. O que se imagina implicaria transformar a escola de educação infantil numa escola onde as crianças são passivas, e onde o ensino acontece através de repetição e memorização. Em espanhol existe uma expressão. La letra com sangre entra. É essa imagem de acesso a escrita que está presente na cabeça das pessoas que acham que a escrita precisa ser mantida fora da pré-escola.
A ideia de ensino parece estar sempre carregada com a ideia de ensino direto, do ensino que se propõe controlar a ação da criança. Com essa concepção de ensino, é inevitável que todos passem a lamentar a perda do lúdico, do criativo, e de todas as coisas interessantes que a educação infantil proporciona. Por isso a escrita não deveria entrar na educação infantil, pois se entrasse , serviria para que as crianças fizessem cópias, ditados, etc., porém, o que se sabe hoje sobre aprendizagem da escrita aponta em outra direção.
E escrita é um objeto sócio-cultural do conhecimento que está presente no mundo onde as crianças vivem. A criança, portanto, deve pensar, refletir e ter ideias sobre a escrita antes de ela ser formalmente ensinada. Mas, então, por que ela não pode pensar e ter ideias também dentro da escola?
As crianças aprendem o tempo todo, mas elas só podem aprender sobre o que está ao seu alcance,presente em sua vida. A aprendizagem da escrita acontece porque o aprendiz tenta compreender para o que serve e como funciona esse instrumento poderoso em nossa sociedade. As crianças constroem ideias suficientes sobre a escrita, necessárias, mas insuficiente; é preciso pôr em uso essas ideias. Essas conceitualizações além de insuficientes são contraditórias entre si, e o aprendiz, quando tem acesso à informação, acaba superando-as. Pois o conhecimento não se dá por acumulação, e sim por um processo dialético de superação pela reconstrução. Na verdade, diferentes concepções de aprendizagem levam a diferentes práticas educacionais e não adianta opor uma práticas às outras sem discutir os seus pressupostos.

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